Eco.Pós - Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ - O Curso
 
 
 
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MEMÓRIA
Entrevista feita em 2014
Muniz Sodré
Professor-titular e emérito da ECO/UFRJ, Muniz Sodré está entre os mais reconhecidos intelectuais brasileiros no campo da comunicação. Em 80% das pesquisas acadêmicas na área realizadas no país, há referências teóricas de Sodré, autor de 36 livros publicados sobre comunicação, cultura, educação, literatura, filosofia e ficção, alguns dos quais clássicos dos estudos de comunicação no Brasil, como O Império do Grotesco, O Monopólio da Fala, A Verdade Seduzida, Antropológica do Espelho e As Estratégias Sensíveis. 

Muniz Sodré é graduado em Direito, pela Universidade Federal da Bahia, com mestrado em Sociologia da Informação e Comunicação, pela Sorbonne, doutorado em Letras, pela UFRJ, pós-doutorado pela Sorbonne e livre-docência pela UFRJ. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, é professor-visitante de várias universidades estrangeiras e membro de associações científicas como a Association Internationale des Sociologues de Langue Française. Fundador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO, junto com Emmanuel Carneiro Leão, Muniz Sodré tem participação fundamental na formação de gerações de mestres, doutores e profissionais de comunicação brasileiros.
DEPOIMENTO:
Muniz, antes de falarmos sobre a pós em Comunicação da ECO, de sua criação aos dias de hoje, conte sobre sua trajetória até chegar à academia, no Rio. Você fez Direito na Bahia, não?
Fiz Direito na Bahia. E fiz aulas especiais de Economia, um curso de Economia que a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) tinha, mas me formei em direito.

Com quantos anos?
Eu tinha 19 anos, 20 anos de idade. E me formei em Ciências Jurídicas e Sociais. A Bahia tem uma Escola de Direito de tradição. Eu estudava Finanças, estudava Filosofia do Direito, Teoria do Estado, que era um curso forte, Teoria Geral do Estado, com grandes professores. Um dos professores de Direito Civil da Bahia, Orlando Gomes, era um dos luminares da área no Brasil. Ao mesmo tempo, trabalhava no Jornal da Bahia. Entrei para o Jornal da Bahia com 14 para 15 anos.

O que você fazia lá com essa idade?
Primeiro, eu entrei como secretário do dono, João Falcão. Mas eu sempre fui bom em línguas, então ao mesmo tempo era funcionário do Departamento de Turismo da prefeitura de Salvador.

Também muito jovem.
Também muito jovem. Eu falava inglês, francês... Eu era, digamos assim, destro em línguas. Hoje, os garotos são.

Mas naquela época isso não era comum. Nem na Bahia, nem aqui.
É, nem aqui, mas hoje, com a proliferação dos cursos... Falei alemão cedo, com 16 para 17 anos. E eu era esperto nesse sentido. Então eu trabalhava durante o dia na prefeitura – era pobre, vinha do interior. Fui demitido em 1967 por Antonio Carlos Magalhães, porque abandonei o cargo para vir embora para o Rio, estava com problemas com a milicada. Então, de manhã era a faculdade de Direito; à tarde, prefeitura; e à noite, Jornal da Bahia. Adolescente, não brincava, trabalhava o tempo inteiro. Eu me sustentava. Eu me sustento desde os 13 anos de idade. Meus pais eram de Feira de Santana.

Você saiu de lá por conta e risco?
Conta e risco. Era tradição na família: os homens iam embora cedo. Vivia com meu parco salário, primeiro de contínuo. Eu fui office boy em banco, quando cheguei em Salvador. Servia cafezinho e água para diretores. E estudava à noite no Colégio Central, que era um colégio de elite.

Era um colégio público?
Público, mas de entrada difícil. Lá estudavam Glauber Rocha na época, João Ubaldo, essa gente toda estudava lá. Era um colégio danado. E, então, eu estudava ali à noite. Dormia no porão da casa de um amigo do meu pai que era rico, fazendeiro. Eu morava no porão dessa casa, de favor, e vivia de salário. Eu era uma pessoa pobre, mas a família inteira estudou, todo mundo: um é médico, outro é oficial da Aeronáutica, a minha irmã é professora.

Seus pais haviam estudado?
Não. Meu pai não tinha nem curso secundário. Mas tinha um jornal, era advogado prático, era político e era também dentista prático. Um dos melhores dentistas de Feira de Santana. E era um homem enorme, grande. Fisicamente não parece comigo. Era conhecido como valente, um homem capaz de construir uma casa sozinho. Sabia tudo, era um factótum, o meu pai. Tudo isso: valente, político, negociava... O hobby dele eram pedras preciosas, que ele conhecia como ninguém. Nunca andava na rua sem ter um revólver 38 do lado e um punhal de prata, até para ir à esquina. Ele era danado. Ninguém se metia com ele, não.

Mas incentivou os filhos a estudar.
Só dava valor a isso. Não dava valor a dinheiro, mas à cultura e à valentia ele dava, às duas coisas. Valentia no sentido “não se deixe humilhar”. Foi o único conselho que ele pôde me dar quando saí de casa: “Não se deixe humilhar”.

Aí você fez contato com o amigo dele em Salvador.
Ah, sim, ele tinha amigos, porque era cabo eleitoral. Tinha sido vereador, foi candidato a deputado. Nunca se elegeu deputado, mas foi vereador. Então ele tinha votos. Em Salvador, eu vivia nessa viração. De vez em quando eu ia lá em casa, minha mãe cosia uma camisa para mim, uma coisa assim. Mas eu vivia por minha conta.

E como é que você veio para o Rio de Janeiro?
Eu me formei em Direito e houve o golpe militar. Salvador ficou insuportável, insustentável para mim. Aí eu vim para o Rio.

Você tinha militância estudantil?
Tinha. Eu não era do Partido Comunista, nunca fui, eu era da esquerda independente. Não tinha militância grande por causa de trabalho. Eu tinha que trabalhar para viver. Todos os meus amigos que tinham militância não trabalhavam para viver.

Filhos de classe média.
É, ninguém trabalhava. Eu tinha que trabalhar para viver, senão eu não pagava meu café, minhas coisas todas. Possivelmente, se eu não estivesse nisso, eu teria tido uma militância até maior. Umas duas vezes fui convidado até para sair do país, para fazer curso de quadro fora. Mas nunca fui.

Não chegou a se filiar ao Partido Comunista?
Não, nunca. Depois eu sou antipartido também. Antipartido, anti-igreja.

Mas era desde jovem?
Desde jovem. Meu pai não era também uma pessoa muito religiosa. Não gostava muito de padre.

Era anticlerical, mas...
Anticlerical, mas tinha essa vivência política. Minha mãe, não. Minha mãe era filha de índio com ciganos, do interior da Bahia, de Santo Amaro. Minha mãe fazia as novenas. Meu pai tinha um culto de Santo Antônio, apesar de não ser católico. Mas de Santo Antônio ele gostava, por causa do pai dele. Mas eu só conheci o avô materno e a avó materna. Índio mais cigano por parte de mãe. Por parte de pai, negro. Então, eu me virava em Salvador.

Então sua vinda para o Rio foi mais motivada por questão política?
Não, eu queria vir para trabalhar na imprensa aqui, eu não queria ser advogado.

Já tinha um jornal em vista?
Bom, no Jornal da Bahia, depois de ser secretário eu assumi a função de redator. Minha escola jornalística foi o Jornal da Bahia. Os cobras da Bahia estavam lá – todo mundo do Partido Comunista. Embora não fosse um jornal do Partido Comunista, o dono, João Falcão, que era rico, dono de imobiliária, foi constituinte em 1948 e era uma espécie de secretário de Prestes, ligado ao Prestes. João Falcão, uma figura notável. Agora, antes de morrer, uns anos agora atrás, quando eu estava na Biblioteca Nacional, ele escreveu um livro, depois escreveu outro, contando a história da vida dele na Bahia. Rico, de família rica de Feira de Santana.

Mas o jornal acabou virando um abrigo de comunistas.
Praticamente só tinha comunista, ou então gente de esquerda. Por exemplo: João Ubaldo, que era redator, não era comunista, mas era de esquerda. Glauber Rocha não era comunista, mas também era empregado do jornal. Muita gente. O Jornal da Bahia era uma lenda no estado, até ser praticamente liquidado pelo Antonio Carlos Magalhães: cortou a publicidade, bateu de frente com o João Falcão. Falcão era fogo, o dono. Então ali foi uma escola de jornalismo. Mas tinha comunistas históricos ali: Ariovaldo Matos, João Batista. João Batista tinha vindo do Rio, dirigia aqui o Jornal do Brasil.

E você conseguiu fazer uma trajetória.
Uma trajetória, lá eu fiz um aprendizado realmente. Eu aprendi texto, essa coisa, foi no Jornal da Bahia. E no Rio eu fui para o Jornal do Brasil. Foi Alberto Dines quem me empregou, por causa de línguas.

Novamente as línguas.
Novamente. As línguas sempre foram, assim, um cartão de visitas para mim. Eu entrei porque o Fernando Gabeira tinha saído da pesquisa, que era um pouco a elite do jornal. Não se sabia na época que ele tinha saído para entrar na militância, mas saiu. Eu peguei essa vaga: “Tem uma vaga, mas tem que saber línguas”, não sei o quê. “Tem que ter um curso universitário.” Eu disse: “Olha, diga aí as línguas que você quer que eu vou lá”. “Inglês, um pouco de francês”. Eu disse: “Não, eu sou proficiente em inglês, francês, alemão, italiano, falo russo.” Ele não acreditou. Eu sempre brinco com o Dines, até hoje ele é meu amigo.

Em que ano você começou no JB?
Em 1965. De lá, eu fui para a Bloch. Eu tinha um amigo, Flávio Costa, foi quem havia me chamado para o Rio, prometendo emprego.

Ele era da Bahia também?
Era. Foi secretário de redação do Jornal da Bahia. Ele tinha vivido em países comunistas: Tchecoslováquia, Nicarágua. Um sujeito bacana também. Fazia ficção. Quase todo mundo fazia ficção. Ubaldo, Flávio Costa, João Carlos Teixeira Gomes era poeta, um bom poeta.

Flávio Costa o chamou para a Bloch, então?
Ele me chamou para a Bloch. Eu fui porque pagava mais.

Foi logo depois?
Eu fiquei pouquíssimo tempo no Jornal do Brasil, e fui para lá. E aí eu fiquei na Bloch vários anos. Eu fui repórter da Manchete, repórter de Fatos e Fotos. Um ano depois, eu ganhei uma bolsa para a França. Aí fui fazer mestrado de Comunicação, Sociologia da Informação, em Paris.

A sua vida acadêmica foi paralela ao trabalho na imprensa? Você já tinha esse interesse antes?
Não, não.

Como a academia se apresentou?
Foi com esse mestrado na França. Eu fiz e voltei. Continuei na imprensa, na Bloch. Aí me deram para dirigir uma revista que ia nascer. Eu fiz o número zero até. Depois entrou o Carlos Heitor Cony, quando a revista estava em banca. Chamava-se Ele Ela. Depois virou uma revista de sacanagem.

Não era antes?
Não, era uma revista para o casal: Ele Ela. Era um formato alemão. Tinha essa revista em alemão: Ele Ela. A Bloch comprou os direitos, aqui adaptava tudo.

Como essa possibilidade de mestrado apareceu?
Na França? Um jornalista da Bloch, amigo meu – amigo, não, conhecido –, me deu a dica: “Tem um negócio de estudar publicação de massa na França”. Eu nunca tinha ouvido falar disso. Aí eu disse: “É, boa ideia, né?”. Ele disse: “Eu acho que só tem uma vaga. Mas você não quer? Porque eu vou me inscrever”. Ele foi generoso, mas ele pensou que eu perderia, porque me viu meio tabaréu, do interior, com sotaque de baiano, e ele subestimou meu francês. Porque ele tinha feito o curso inteiro da Aliança Francesa, e ele falava, assim, com sotaque. Pois bem, eu passei e o cara me disse: “Você passou pelo francês”. O francês e as demais línguas, eu falo todas com sotaque baiano, de interior, só que o meu vocabulário, em qualquer dessas línguas, é um vocabulário superior. Até mesmo no inglês.

Mas como você aprendeu? Você é autodidata?
Autodidata em tudo, menos em alemão, em que fui autodidata no início, depois passei um ano e meio no Goethe-Institut. Mas nunca entrei na minha vida numa Aliança Francesa, num Ibeu. Nunca. Em russo, a mesma coisa. Eu tinha, ou tenho, talento para línguas. Por exemplo: aos 13 anos, 12 anos, eu era professor de Latim. Eu era o melhor aluno de Latim que o colégio estadual teve. Para o vestibular de Direito havia uma exigência terrível de Sociologia e Latim, as pessoas morriam de medo do latim, com a Eneida, de Virgílio – é difícil a Eneida –, e As Catilinárias, de Cícero. Havia prova escrita e oral. O professor que veio me examinar na oral, eu vi que ele não sabia o latim que eu sabia, mas fiquei na minha. Deu 10. Eu sabia muito latim. Por essa facilidade de aprender línguas houve gente que pensou depois que eu era até seminarista. Nunca, eu era anticatólico, embora amigo de padres, eu gostava de ir para a Igreja São Francisco à tarde ouvir os cânticos gregorianos. E aqueles freis ali todos, eu gostava de praticar com eles alemão. Mas autodidata, basicamente autodidata.

Você procurava livros e ia aprendendo?
Isso. E, como eu trabalhava no Turismo, tinha sempre um ou outro para falar. Eu já não falo mais as línguas como falava, não tenho mais gosto de ficar falando, mas tenho proficiência nelas para ler, traduzir e escrever, também.

Voltando ao seu mestrado, você já se via como, por exemplo, teórico da comunicação?
Não. Eu tentava jornalismo, mas não gostava. Eu passei a não gostar de jornalismo aqui no Rio.

Por quê?
Primeiro, pela pressão que havia nas redações com o regime militar – era uma coisa arriscada; segundo, não ganhava bem; terceiro, eram instáveis as relações de emprego. E eu sempre fui cê-dê-efe, um pouco nerd nesse sentido. Eu gosto de estudar, de ler. É impossível eu não estar lendo dois ou três livros ao mesmo tempo: um de ficção, romance policial. Eu gosto, escrevo ficção também. Gosto de ler, sou viciado nisso. Só que eu sou uma pessoa de ação também. Gosto de fazer, de praticar. Essa infância pobre, essa coisa de subir na vida, me deu outras perspectivas além de ser o nerd quieto. Por exemplo: sempre fui assim, esse tipo magro, mas sempre fui de briga.

Você pratica capoeira, não?
Fiz capoeira do mestre Bimba, que era uma capoeira de porrada, diferente da capoeira angola. Fiz jiu-jítsu com Waldemar Santana, lá na Bahia, que lutou com Hélio Gracie, ganhou do Hélio Gracie. E, desde que estou aqui no Rio, caratê, com Hiroyasu Inoki, até hoje. Três vezes por semana eu estou lá, sou faixa preta do terceiro dan, do estilo shotokan. Sempre fiz atividades físicas, mas isso não me impediu de ter um infarto em 2003, quando estava naquele conselhão do Lula, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Tive um infarto indo para Brasília, mas só soube que tive o infarto três dias depois. Passando mal, me internei, me botaram um stent. Depois, por prevenção, botei mais dois. Mas 15 dias, 20 dias depois do stent eu já estava lutando caratê de novo.

Então, nesse sentido, você nunca foi aquele intelectual clássico.
Não. Sou um sujeito que se vira.

E como foi a passagem – se foi uma passagem, ou se correu em paralelo – do jornalismo para a academia?
Comecei a fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Por volta de 1970, quando eu fundei aqui a escola com o José Carlos Lisboa, com todo mundo, eu ainda estava na imprensa. E aí me chamaram, eu fui levando, levando, até que em 1973 eu deixei definitivamente a imprensa. Eu saí, e vim ganhar aqui umas quatro ou cinco vezes menos do que ganhava na Bloch.

Ainda assim preferiu a academia, já na ECO.
Não era um salário para se viver, eu tinha que fazer outras coisas. Era muito pouco. Não havia carreira de professor como hoje. Eu ganhava menos, mas era muito mais feliz com aquele pouco salário, porque na Bloch eu não aguentava mais aquele negócio. Era muito medíocre. Minha vida feliz no trabalho foi aqui na ECO. Mas eu sempre fiz outras coisas. Eu fui diretor da TV Educativa em 1979 e 80, quando Gilson Amado morreu. Eduardo Portella era ministro. E o Portella foi um dos fundadores aqui também.

Estava ministro.
É, do “estava ministro”. Fui, depois, da Biblioteca Nacional. Eu tive cargos públicos.

A biblioteca em pouco tempo, não?
Pouquíssimo tempo. Fui assessor durante algum tempo da Globo, lá da diretoria. Eu tinha me esquecido disso completamente. Soube dois anos atrás, descobri que tinha um negócio de PIS como empregado da Globo. “Eu?!”

Você recorda em que ano trabalhou na Globo?
Não, mas foi certamente antes de 1977, em 1977 eu fiz um livro, O Monopólio da Fala, e entrei para o índex dos proibidos da Globo por causa desse livro, porque as pessoas ficaram achando que O Monopólio da Fala era a Globo. Não era, era um conceito semiótico. E esse livro foi bastante lido, ainda é bastante lido, tem muitas edições. Quando eu cheguei à TVE, tinha gente do SNI que me puxava o saco, né? Aí soube que eu era uma pessoa suspeita em tudo que é ficha de informação.

Era visto como esquerdista, naturalmente.
Era visto como uma pessoa da esquerda, mas as informações às vezes estavam erradas. Eu teria feito “um discurso em Mariana para os estudantes”, falando mal dos militares. Mas eu nunca estive em Mariana, que eu me lembre, não fiz discurso. Mas há uma ficha do SNI, um pedido de informações sobre mim, de 1975, que me faz elogios. Eu guardei. Diz que eu exerço honestamente a minha profissão na Bloch Editora.

Não tinha atuação partidária?
Eu não gosto de partido. A única agremiação, vamos dizer assim, de que eu faço parte, onde tenho uma função hierárquica de que tenho orgulho, é o Terreiro de Axé Opô Afonjá, na Bahia, onde sou obá xangô. Eu sou da hierarquia do candomblé na Bahia, e tenho muito orgulho disso. Eu falo iorubá, vou aos cultos – sou de um culto de Xangô. É a única.

Lá na Bahia ou no Rio também?
Na Bahia, mas aqui os candomblés de Afonjá me reconhecem também. As velhas vêm me tomar bênção. E aqui eu, durante muitos anos, frequentei a casa do professor Agenor, que era um grande babalaô, da tradição negra – embora ele fosse branco de olho azul, essas coisas do Brasil. Fiz um livro sobre ele chamado Um Vento Sagrado, com um aluno aqui da ECO, Luís Filipe de Lima. Foi meu aluno de graduação, de mestrado, de doutorado. E meu amigo. O Luís Filipe é de candomblé, é feito no candomblé. Fizeram um filme a partir do livro. O enterro do Agenor aconteceu dentro do prédio do MEC, porque o Gilberto Gil, que era o ministro da Cultura, abriu as portas. Quando o professor Agenor completaria 100 anos – ele morreu com 96 anos –, eu já estava na Biblioteca Nacional. E fiz uma grande festa na Biblioteca Nacional, não com coisa religiosa, porque não podia, mas como uma pessoa de letras, pois ele era um grande poeta parnasiano, foi professor do Colégio Pedro II.

Então, retomando, vinculação com o Partido Comunista não havia.
Muita gente pensava que eu era comunista. Inclusive eu tenho uma certa bronca, grande parte dos comunistas que eu conheci era uma gente reacionária, dura com as mulheres, com uma vida pessoal cheia de preconceitos. Não me atraem essas camisas de força, não.

Desde que entrou na UFRJ, você interrompeu sua trajetória alguma vez?
Não, nunca interrompi. Só para viajar para a França uma segunda vez, em 1980, mas como professor, fazendo pós-doutorado lá.

Você falou que, em 1970, veio para cá criar a escola.
Eu vim aqui para este prédio (da ECO), mas já estava na Praça da República. Entrei lá em 1968 para 69. A Escola de Comunicação foi criada por um decreto do Castello Branco de 1967: transformava o curso de Jornalismo em Escola de Comunicação. Foi nessa onda que o Lisboa resolveu transformar o antigo curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia em Escola de Comunicação. E aí eu fui chamado.

Depois veio para a Urca.
Em 1970 a escola veio aqui para este prédio, já era diretor o Simeão Leal, uma figura extraordinária. Médico de formação, um cara genial, também artista plástico. Doido varrido. Era um cara brigão, paraibano, terrível. Foi ele quem fez o doutorado, o mestrado, ideia dele. Chamou o Emmanuel Carneiro Leão, que é o mais extraordinário professor de Filosofia que eu já conheci. Estudei na França, eu fui aluno de Roland Barthes – Barthes é a figura mais inteligente que eu já vi na minha vida, mais brilhante, mais luminoso. Mas Emmanuel Carneiro Leão, que não tem uma obra escrita enorme, tem poucos livros, era um Sócrates brasileiro para mim. Uma pessoa impressionante, com uma cultura impressionante. Mas não é a cultura que impressiona, eu conheci gente muito culta assim. Por exemplo: Antonio Houaiss. Antonio Houaiss era cultíssimo, mas não é a mesma coisa do Carneiro Leão. Carneiro Leão tem uma cultura igual ou maior, mas maior do que a cultura é a inteligência dele.

E a capacidade dele de passar esse conhecimento também era grande?
Total, para quem se deixava iniciar por ele e para quem ele tinha vontade, porque, dependendo do dia e do humor, era assim: ele olhava para a turma e não entrava na sala, saía.

Ele foi importante na sua formação?
Foi essencial, primeiro, como amigo íntimo – até hoje, embora eu o veja pouco. Ele se aposentou, mas sempre nos falamos pelo telefone. Emmanuel Carneiro Leão é um grande mestre, um grande mestre. Ele foi aluno de Heidegger, um dos alunos brilhantes de Heidegger na Alemanha. É de um conhecimento de alemão, de latim, de grego superior. Superior. Foi um mestre para mim na vida. Outro: Simeão Leal. Não por esses motivos do Carneiro Leão, mas como gente, uma pessoa que gostava de gente – era Simeão. Quer dizer, tinha gente de quem ele não gostava, porque era brabo mesmo. Ele adorava a escola e gostava muito de mim e do Carneiro Leão. Foi um cara que aglutinou essa escola e botou para fora figuras indesejáveis. Com ele não tinha problema, negócio de coronel e do Dops. Armado ou não.

Tinha coragem física.
Uma coragem física enorme. Daí ele pôde fazer a ECO mesmo num tempo muito difícil: tinha pessoal de esquerda aqui dentro, alunos foram presos. Ele era primo do comandante do I Exército, Reynaldo Mello de Almeida, um cara que tinha acesso familiar ao comandante do I Exército, que gostava dele.

Podia comprar brigas.
Simeão tinha costas quentes. E era uma pessoa que, se visse talento, abria mão da parte dele, por assim dizer, para apoiar. Isso é muito importante quando você funda um negócio. A ECO não tinha prestígio nenhum, era uma escola surgindo. Não tinha nenhuma importância na reitoria – eu acho que a gente tem muita, hoje. Hoje é porque a palavra “comunicação” cresceu, mas na época não significava nada. Tanto que este prédio era da Farmácia, quando Hélio Fraga era o reitor.

Você deve conhecer boas histórias do Simeão.
Várias. Quando a ECO foi criada, ele resolveu ficar com estantes vazias, onde ficava a biblioteca. Aí o reitor mandou tirar. De manhã, vieram os operários com um engenheiro para tirar as estantes da biblioteca. Meteram a chave na porta. Quando abriram a porta, quem estava sentado lá dentro? Ele, sentado numa cadeira com um cinto na mão, que era a marca dele: exemplar homem com surra de cinto. Ele deu surra de cinto em muita gente, há uma carreira famosa que ele deu em Breno Accioly, contista, um gaúcho que tinha 2 metros de altura – ele deu uma carreira no Breno Accioly pelos corredores do MEC com o cinto na mão.

Os operários tentaram cumprir a tarefa?
Quando entraram, o Simeão: “Vocês querem tomar uma surra de cinto? Ou saem daqui agora, ou todo mundo vai tomar uma surra de cinto.” Nunca mais voltaram. Porque, junto com isso, ele fez uma ameaça ao reitor: “Se o reitor mandar de novo, eu vou lá me entender com ele”.

E o currículo da escola, como foi montado?
Ninguém tinha a teoria. Eu fazia junto com o Carneiro Leão o currículo da graduação, no início. Como também na UFF, porque eu estou na Fluminense desde o início. Fiz concurso lá junto com Nelson Pereira dos Santos e com Nuno Veloso, depois eu trouxe para cá o Nuno Veloso. Só que o Nelson fez para titular, ele foi esperto. Eu podia ter feito para titular. Fiquei achando que era demais, então fiz para adjunto.

Primeiro você deu aula na graduação e logo depois na pós, não?
Logo depois na pós. Acabei fazendo doutorado em Letras, mas já dava aula aqui na pós-graduação. Fiz doutorado em Letras, eu e o Marcio Tavares. Sempre estivemos juntos aqui, eu e Marcio. O Carneiro Leão concebeu a pós-graduação da seguinte forma: entendendo comunicação não como jornalismo, apenas, mas o jornalismo como uma prática dentro da comunicação, uma prática entre outras: publicidade, produção editorial.

Era uma visão comum a outros cursos de pós-graduação?
Não era comum. Daí a razão de a pós-graduação ter enfrentado grandes dificuldades com a Capes, porque a Capes era dominada pelos paulistas, e eles queriam um curso profissionalizante, mas a posição da ECO sempre foi mais teórica. Como se entendia a comunicação aqui? Se entendia como um pensar, pensar essa coisa do jornal, do rádio, da revista, esses dispositivos técnicos que estavam surgindo com a mudança, com a mutação em cima do jornalismo, a televisão... Então, a comunicação como uma atividade de pensamento. Olha, essa posição de pensar a comunicação como uma atividade era uma posição de Wittgenstein. Wittgenstein concebia a filosofia como uma atividade de elucidação das questões que a linguagem traz para qualquer pessoa ? seja para o cientista, seja para o filósofo, seja para o homem comum ?, uma atividade de elucidação, não um corpo doutrinário, não, digamos, um conjunto sistemático de conhecimento como a ciência ? mas filosofia é uma outra coisa, essa atividade de esclarecimento, de elucidação, de resolução das questões difíceis. E a comunicação, para Carneiro Leão, que era um mestre, entrou nesse sentido, aqui. Porque nós nos revezávamos na condução, na direção da pós. Eu, Carneiro Leão e Marcio, durante muitos anos. Saía um, entrava outro. E eu dava um curso junto com o Carneiro Leão, por muitos anos, ao mesmo tempo.

Na mesma sala, na mesma hora?
Na mesma sala, na mesma hora. Fábio Lacombe, Maria Helena Junqueira, a que depois se agregou Francisco Antônio Dória. Era, às vezes, mais professor do que aluno. Era um curso experimental, que dava aulas iniciais e depois era só diálogo em cima daquilo. Era um curso famoso aqui na pós. Os alunos apelidaram de “Rock in Rio”, porque, segundo eles, eram vários astros. Foi uma grande época essa para nós aqui.

Essa contribuição poderia se considerada específica da pós da ECO?
Sim. A pós daqui era teórica, com professores teóricos, o que provocava uma certa raiva, um certo ódio em uma certa parte dos professores de Jornalismo, que queriam tornar a escola uma coisa prática, que é um perfil de outras pós e de outras escolas. Porque isso atingia mesmo a graduação. Mas o retorno que nós tivemos depois, sempre tivemos, foi de gente, mesmo de jornal, de imprensa, que voltava para fazer a pós aqui depois de se graduar, e queria exatamente teoria ? “Ah, isso aí eu aprendi no jornal, aprendo no jornal.” Não existe uma teoria do jornalismo, existe um saber jornalístico. Você pode refletir sobre ele. Eu até tratei disso no meu livro A Narração do Fato. É sobre isso. Mas há pessoas, jornalistões, um deles mesmo, não dou o nome, era um bom professor de jornalismo, mas fanático por essa coisa prática, trouxe para cá. Mas, aqui, nunca prosperou.

A pós nunca se distanciou dessa intenção original?
Nunca se distanciou disso. Agora, hoje há uma mudança, depois da internet, depois do controle muito grande da Capes, sobre o conteúdo das disciplinas e sobre a produtividade. Para poder ter nota na Capes, para poder ter bolsa, para poder existir, você tem que se conformar ao que a Capes diz, a Capes faz. Tem que se ajustar a isso. Hoje eu diria que é uma produtividade fast-food. Tem que produzir artigos, não importa que ninguém leia, artigos que às vezes você pode montar de outro texto. Importa é o número que aparece no currículo lá, para depois ser avaliado, numericamente, pelas comissões da Capes. Eu sinto uma mediocrização do campo.

Em relação a essa primeira concepção?
Não quer dizer que sejam medíocres, os professores. Não, eu acho o contrário: nesse meio-tempo, os professores de hoje sabem mais do campo do que sabiam antes, eles constituíram linhas de pesquisa, linhas próprias. Embora poucos trabalhem essa noção de totalidade do campo. Por exemplo: vai haver agora em São Paulo, agora em outubro [outubro de 2014], um encontro organizado pelo Ciro Marcondes, que é da USP, chamado de Pensadores da Comunicação, para pensar o campo. São poucas pessoas que foram chamadas para esse encontro. Serão três dias discutindo isso. Poucas, porque o campo se dispersou muito ? professores competentes no que estão fazendo, mas o campo muito disperso. Então, nesse encontro estarão o Marcondes, que trabalha com isso, com filosofia, eu, Lucrécia Ferrara, o José Luiz Braga, o Luís Martino, que aliás foi meu aluno ? poucas pessoas.

Falando em aluno, entre os que passaram pela pós, você destacaria alguém?
Olha, eu não vou dar nomes porque fui professor da maior parte dos professores da ECO. Você pega a Ana Paula Goulart: foi orientanda do Milton José Pinto aqui, mas foi minha aluna na graduação da UFF. Depois eu fiz parte das bancas em que ela esteve. Eu presidi o concurso em que ela entrou na escola. Só para citar uma. Fui eu o orientador do doutorado do Milton José Pinto, porque eu também mexia com linguística. Depois abandonei essa perspectiva. Por exemplo: semana passada, eu que fiz a conferência de abertura do congresso de semiótica do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação, em Alagoas. Eliseo Verón criou lá, em Japaratinga. Fui ano passado como conferencista, fui no ano anterior, e ele queria que eu fosse dar essa palestra de abertura. Tinha gente da França, gente da Argentina. A conferência estava cheia de gente, muita gente. Eu sempre mexi com semiótica, mas uma semiótica mais aberta, mais pensada, não aquela coisa formal. Presidi banca de concurso de quem mais? Do Marcio também, para titular. Olha, eu tive muito aluno, muito aluno.

Falando de forma genérica, as pessoas que saíram daqui são importantes para o campo da comunicação?
São, são importantes. Eu cito um nome, que foi minha aluna e é minha mulher: Raquel Paiva. Veio de Juiz de Fora, já era professora, fez mestrado aqui. Eu fui seu orientador. Ela também foi para a Europa, para Turim, depois se tornou minha mulher. E a Raquel, eu a considero um dos eventos mais bem-sucedidos de linha criada aqui na ECO e que hoje está em todo lugar, que é comunicação comunitária, uma expressão dela, aliás, não jornalismo comunitário. Este lugar onde estamos conversando, o Lecc, Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, que já existe há 15 anos, deu formação para rádios comunitárias em favelas; participou da criação do Comunicação Popular Crítica da Maré, com o Jailson de Souza e Silva, que é ligado ao Observatório das Favelas; enfim, cursos na Bahia. Este lugarzinho aqui é muito importante na escola. É uma coisa prática da comunicação, sem ser jornalismo apenas. E agora ela fundou o Instituto Nacional de Pesquisa em Comunicação Comunitária, o Inpecc, que congrega a ECO, o laboratório da UFF e outro do Rio Grande do Norte. E estão aderindo outros cursos. Então você vê: foi uma disciplina que não existia, que nasceu aqui da tese da Raquel.

Há outros exemplos nessa linha?
O Idea, do Marcio. Uma turma de primeiro plano aqui para pensar filosofia e comunicação. Aí você tem o Marcio, que se aposentou, como eu, e continua na ativa ? nós somos eméritos. Tem o Paulo Vaz; o Mauricio Lissovsky, que agora é o coordenador da Capes; tinha o Luiz Alberto Rezende, que é físico; Henrique Antoun. Tinha uma turma grande, nem sei mais quem está lá no Idea. Existe o grupo da Heloisa Buarque de Hollanda, o Pacc (Programa Avançado de Cultura Contemporânea). Há vários núcleos. Eu hoje perdi um pouco a dimensão, mas era uma escola caracterizada pela existência de núcleos, todos ligados à pós. Hoje isso existe também em vários outros lugares. Eu acho que a ECO foi o motor disso, o motor desses núcleos diretamente ou indiretamente ligados à pós e com áreas de estudo diferentes. Quando a pessoa vê de fora a Escola de Comunicação, a partir de jornal: “Isso aqui é escola de Jornalismo”. Não é. Aqui a Comunicação se tornou uma coisa bem mais ampla. Aqui é, na verdade, uma ciência social aplicada.

Você falou em resistência inicial a esse conceito. Mas, apesar da resistência, a pós se consolidou.
Enfrentamos muita resistência a esse conceito, mas a escola persistiu nisso. E hoje, quando mudou, está adequada mais a Capes, foi por também uma diversificação dos professores que chegaram e que são muito competentes em seus campos. Eu posso citar alguns deles. O Eduardo Granja Coutinho, que trabalha com música popular, tem um livro, Velhas Histórias, Memórias Futuras, sobre Paulinho da Viola, a tese dele de doutorado. Escreveu também Os Cronistas de Momo: Imprensa e Carnaval na Primeira República, muito bom. Trabalha com essa coisa da música popular e com Gramsci, é o comunista aqui da escola. Foi meu aluno também, orientando meu, meu doutorando aqui na ECO. Acabou de fazer um livro muito bom, A Comunicação do Oprimido e Outros Ensaios, em que há um ensaio em homenagem a mim, sobre a alegria. É lindo, uma das coisas mais bem escritas que eu li nos últimos tempos. Tem o João Freire, muito bom professor; aqui tem gente da área de cinema, como André Parente, muito bom. Tem muita gente aqui, muita gente. A Marialva Barbosa, que agora é presidente da Intercom. Vou citando, assim, pessoas mais próximas e muito boas, realmente. Micael Herschmann, filho do Rubens Gerchman. Muita gente boa nessa escola, muita gente boa mesmo.

Saídos daqui também para outras escolas de Comunicação pelo país.
Sim, alunos daqui na UFBA, na UFF. João Baptista de Abreu, da UFF, fez doutorado aqui. Tem gente em Brasília, Alagoas, Maranhão, Belém do Pará. A escola alimentou as outras, muitas outras. Eu acho que, quanto mais pobre você é em termos de recursos, mais você se segura em determinadas coisas que não precisam de tecnologia cara. E talvez a sorte aqui da escola foi ter sido sempre pobre. É difícil dizer isso. Hoje existem equipamentos, mas não são esses equipamentos a glória da escola. É mais a capacidade dos professores, eu diria. E por quê? Se você não está ligado, seguro em equipamentos, você é obrigado a pensar, a construir sua teoria. Agora, a internet mudou tudo isso. A internet está mudando completamente o currículo da escola. E a tendência é essa ? o Jornalismo se voltar para cursos ligados à comunicação eletrônica, à internet em seu amplo espectro. Essa é a tendência da escola, da graduação, agora. A pós, não; a pós é reflexão. Pode contemplar isso, mas não é isso. Mas a graduação, sim. Aí a escola certamente vai mudar. É uma nova geração que entra, já falando de assuntos que eu nem conheço.

Mas refletir sobre um saber que ainda está em mutação também é mais difícil.
Sim. Está saindo agora um livro meu, resultado de curso aqui na pós, curso no exterior, porque também sou professor visitante em Sevilha. Chama-se A Ciência do Comum: Notas para o Método Comunicacional. Uma reflexão que inclui a internet. A comunicação eletrônica é mais importante do que a mídia clássica, embora eu ache que até hoje a internet não deu um jornalismo comparável ao jornalismo de papel. Pode ser que venha a dar, mas ainda não deu.

Que reflexão você faria sobre o jornalismo de hoje?
Para mim, a imprensa entrou em decadência. Quer dizer, que fique claro, você tem os grandes jornais americanos, jornais brasileiros, nós continuamos a ler jornal, mas já não é mais o mesmo jornal que líamos, porque perdeu a função. O prestígio da imprensa no Ocidente se deve ao segundo artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que fala das liberdades de expressão como liberdade civil – não liberdade política. Liberdade civil é uma coisa moderna, a liberdade de expressão, de locomoção. Isso é liberdade civil. A imprensa foi o que levou isso para frente. O prestígio da imprensa está colado nesse segundo artigo. É como se fosse, digamos, um dispositivo forte. Os argumentos quando se mata um jornalista, quando a ditadura sufoca a imprensa são em cima disso. E esse espírito liberal, essa coisa liberal, nunca se extinguiu de todo. Nunca se extinguiu ideologicamente, mas, na prática, eu acho que já está em extinção. Na prática, a liberdade de imprensa hoje é a liberdade do dono do jornal, da empresa, não é a liberdade de expressão, de falar. É por isso que Balzac foi contra a imprensa, tem libelos contra a imprensa. Porque ele mesmo se considerava um jornalista, mas ele dizia “jornalista panfletário”, de panfleto – panfleto no bom sentido na expressão. Então eu acho que essa imprensa está acabando, está se extinguindo.

Para dar lugar a...
Para dar lugar a alguma coisa dentro da indústria de conteúdos que tenha a internet como suporte. A internet, para mim, é outro país. É outro continente. Nesse nível, eu defino a internet como um outro continente, um continente acima dos outros que estão aí, que atravessa todos os outros. E como continente ela tem, para mim, um efeito mais geográfico do que cultural. Ela mexe com as placas tectônicas em cima das quais nós estamos assentados. Uma mutação profunda. Mas, portanto, a informação é mais necessária do que nunca. Não sei se o jornalismo... Porque é preciso fazer uma distinção entre jornalismo e informação. Os jornalistas confundem muito jornalismo com informação. O conteúdo dito informativo, informacional, é uma coisa – o jornalismo é esse conteúdo posto em discurso de revelação dos segredos do Estado, de esclarecimento dos públicos. É isso que é o jornalismo desde o século XIX. Então não basta informar. Porque hoje nós somos informados de todos os lados, não apenas lá com o jornal. Qualquer coisa está nos informando. Até vendo as feras no NatGeo – o comportamento dos leões, das hienas, do peixe –, nós estamos o tempo inteiro antropomorfizando essas coisas. Temos a “orca, a baleia assassina”. Nenhum animal é assassino. O animal pode matar gente. Por quê? Porque ficou velho, está com fome, por competição de território, porque invadiram o território dele. Eu gosto de ver esses programas. Fica-se escandalizado porque as leoas atacam aos magotes as zebras, atacam as gazelas, e parece uma ferocidade terrível cinco leões pulando em cima de uma gazela. Sempre foi assim, porque ele precisa comer. É assim a lei da selva, a lei da sobrevivência. O homem sempre fez isso, muito mais do que um leão mata uma gazela. Mas no NatGeo parece uma coisa terrível. Ou a orca que matou a treinadora, vídeo muito visto na internet. Possivelmente nesse dia a orca não estava muito bem, estava um pouco irritada por alguma coisa: comida, muita gente. Às vezes, o movimento das pessoas pode ter parecido agressivo para ela. Essa é a primeira hipótese. A segunda é que era um jogo, um jogo que ela já tinha feito antes, ela só quis jogar. Assassino é o homem. O homem é o único animal capaz de assassinar. Mas, se você está sendo informado, nada é mais de graça, nesse sentido. Você não escapa da informação. Mas isso não é jornalismo. O jornalismo, historicamente, é tudo isso – essa informação que se dá – no sentido de ampliação do público, formação do público. Por outro lado, o jornalismo depende do espaço público, e o espaço público não se ampliou, ele encolheu. Você diz: “Quanto mais televisão, quanto mais internet...”. Parece que o espaço público se ampliou. Ampliou-se tecnicamente.

O Facebook já é uma rede do bilhão.
É, mas 1,2 bilhão é um absurdo. Nenhum jornal nem televisão teve essa audiência. Aí parece que o espaço público se ampliou, mas isso não é espaço público. Isso é espaço publicitário. É outra coisa, é diferente. Esse é um espaço dessa informação tornada pública. O espaço público sempre foi um lugar de debate e discussão ligado à política e às letras. Sempre foi. Então isso é placa tectônica que se deslocou. Nós temos as mesmas coisas, mas as coisas não são as mesmas. Elas se deslocaram. Ora, o jornalismo – o nome – permanece, mas com cada vez menos jornais. Os jornais importantes são O Globo, o Estadão e a Folha, o Correio Braziliense. Você tem um jornal em cada lugar. Mas quando eu cheguei ao Rio, em 1965, havia muitos jornais. As coisas vão se encolhendo, mas parece que você tem uma fonte ampla de informações. O Globo tem os colunistas dele, as opiniões, você pode mandar uma carta – se eles acharem conveniente, eles publicam. Não é todo mundo que lê carta de leitor. Aí você tem também uma crítica à imprensa que surgiu. Eu escrevo duas vezes por mês para o Observatório da Imprensa. Há 15 anos. Semana passada mesmo, participei de um sobre preconceito na televisão, com o Dines: eu, Chaim Katz, que foi aqui da escola, psicanalista há muitos anos. Portanto, sou uma pessoa que acha que o jornalismo ainda tem uma função social importante. Mas não é mais o mesmo. Você tem que repensá-lo.

Inclusive do ponto da viabilidade econômica.
Viabilizar economicamente e pensar. Eu diria que as pessoas que fazem o jornalismo e que são boas em fazer jornalismo são maus pensadores do jornalismo. E acho inútil, porque o sujeito que está na redação e que fecha o jornal, que está no dia do pescoção, não quer saber de negócio de pensar. Quer fazer o jornal, botar o bloco na rua e sair. Para isso, a escola também é útil, embora os jornais, no fundo, desprezem a academia. Mas eu compreendo isso. Sempre houve uma rivalidade: “Quem ensina não faz.” Isso é mentira. Quem ensina faz alguma coisa com palavras. Falar, comunicar é fazer também. Fazer não é só manipular isso aqui ou escrever. É fazer com palavras. Então quem ensina faz, e com palavras também. As palavras são instrumentos, só. Em geral jornalista é meio obtuso. Eu acho que o jornalismo está em crise.

Muniz, para encerrar, você poderia dizer quais dentre seus livros você considera mais importantes?
Eu tenho duas linhas de livros: livros sobre cultura brasileira e livros sobre mídia, mídia de um modo geral.

Além do trabalho ficcional.
Sim, ficção, cultura brasileira e mídia. No total dá uns 36 livros, publicados em editoras diversas. Então, meus livros atualmente mais lidos pelo pessoal da pós são Antropológica do Espelho, que é uma teoria da comunicação, e As Estratégias Sensíveis. Recebi hoje um e-mail de um cara que renovou a Universidade Federal do Sul da Bahia, mudou o currículo todo, e está agora como reitor da Universidade do Sul da Bahia, que é uma universidade experimental que une as cidades da região – Naomar de Almeida Filho. O e-mail é sobre um livro que está sendo realmente lido pelo pessoal da educação. Chama-se Reinventando a Educação. Foi o primeiro livro sobre educação que eu publiquei. Tem um prefácio do Leonardo Boff, e o Boff é um propagandista entusiasta desse meu livro, saiu há dois anos, 2012 ou 2013, já não lembro. Então, destaco esses de mídia e de educação. E, de cultura brasileira, aí eu tenho um livro chamado Claros e Escuros, sobre a questão de raça aqui no Brasil – estou agora introduzindo um capítulo sobre cotas. E um livro chamado A Verdade Seduzida. Desse aí as pessoas gostam muito. Tenho também um livro dessa coisa de negro aqui no Brasil – o pessoal da geografia lê muito. Chama-se O Terreiro e a Cidade, que é sobre espaço e território aqui no Rio de Janeiro.

E em ficção?
A José Olympio reeditou no ano passado meu primeiro livro de contos, que é de 1988. Santugri: Histórias de Mandinga e Capoeiragem. A melhor resenha desse livro foi feita por João Bosco, o músico, com uma canção em homenagem a mim – está no disco As Mil e Uma Aldeias. Você entra na internet, põe o nome da canção: Convocação.

 

LOCALIZAÇÃO:
RJ, Brasil
Eco.Pós - Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ - O Curso - Histórico
REVISTA ECO-PÓS
v. 27 n. 04 (2024)
O livro hoje: leitura e diversidade
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